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Atestados supostamente falsos que teriam sido emitidos por UPA de Salvador • Reprodução

Fraude em Atestados Médicos: Um Risco Ético, Econômico e de Reputação para a Medicina Brasileira

09/05/2025

Fraudes em atestados médicos minam a confiança na Medicina e geram prejuízos bilionários. Dra. Caroline Daitx aborda como essa prática ilegal afeta a classe médica e o sistema de saúde.

A Medicina é, por essência, um pacto ético com a vida e com a verdade. No entanto, esse pacto tem sido ameaçado por uma prática criminosa e preocupante que mina a credibilidade da nossa profissão: a falsificação de atestados médicos. Essa conduta, além de crime previsto no Código Penal Brasileiro, representa um grave desvio ético que afeta diretamente a reputação da classe médica, a confiança do paciente e os cofres públicos e privados.

Em tempos de hiperconectividade e dados rastreáveis, fraudar documentos médicos não é apenas um erro — é um atentado à credibilidade científica e à segurança de pacientes e empresas. E como toda ferida ética, essa também sangra economicamente, gerando prejuízos bilionários para empresas, comprometendo políticas públicas e enfraquecendo a percepção social da medicina como profissão de confiança.

Como fraudes em atestados comprometem não apenas a integridade profissional, mas também a segurança de pacientes e empresas? É o que vamos explorar.

O Que Está Por Trás da Emissão de Atestados Falsos?

A motivação por trás da emissão (ou compra) de atestados falsos pode variar, mas invariavelmente envolve má-fé. Desde pressões externas por justificação indevida de faltas, até conivência com práticas antiéticas por parte de alguns profissionais – o cenário se complica enormemente quando entram no jogo profissionais de saúde reais que, por negligência ou má-fé, validam ou participam de fraudes.

Segundo o próprio Conselho Federal de Medicina (CFM), fraudes documentais estão entre as infrações éticas mais recorrentes reportadas nos Conselhos Regionais de Medicina, conforme apontam alguns levantamentos internos. Isso me mostra que não se trata, portanto, de episódios isolados — mas de um problema sistêmico que exige nossa atenção constante.

A gravidade dessa prática é ilustrada por casos reais que vêm à tona periodicamente. Embora um caso específico em Salvador em julho de 2024 não possua registros públicos confirmados até o momento, esquemas semelhantes de venda de atestados falsos são frequentemente desarticulados em diversas cidades do Brasil, como ocorreu no Rio de Janeiro em 2023 ou em São Paulo em 2022, envolvendo inclusive a ação de médicos e funcionários públicos. Esses casos expõem a fragilidade do sistema e a profundidade da infiltração da corrupção, com pacientes chegando a pagar valores diversos, como a partir de R$ 30 em alguns esquemas desbaratados na Bahia, para obter documentos sem avaliação clínica real.

O Impacto Financeiro: Dados que Não Podem Ser Ignorados

O impacto da fraude em atestados vai muito além da ética e da lei; ele sangra a economia.

  • Embora estatísticas exatas sobre a porcentagem de atestados falsos no varejo ou números precisos de emissões em cidades específicas (como 30% ou 1800/mês em Brasília, com prejuízo de R$ 20 milhões) sejam difíceis de verificar em fontes públicas da Fecomércio-GO ou Governos Locais sem relatórios específicos, a percepção de um número significativo de atestados fraudulentos no mercado é amplamente compartilhada por empresas e gestores.
  • O absenteísmo fraudulento é estimado por entidades como o Instituto Brasileiro de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) ou o Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (IESC/UFRJ) como causador de bilhões de reais em perdas para o setor produtivo no Brasil anualmente. Embora a estimativa de R$ 200 bilhões seja alta e possa englobar outras formas de absenteísmo, a magnitude do prejuízo relacionado a afastamentos indevidos é inegável.

São dados alarmantes que mostram a dimensão do problema e por que combatê-lo é crucial para a sustentabilidade dos negócios e a integridade do sistema.

Como Identificar um Atestado Falso?

Para gestores e profissionais de saúde, estar atento é o primeiro passo para conter essa fraude.

Verificação de Autenticidade

Todo atestado médico autêntico deve conter elementos de segurança e informações obrigatórias que permitem sua validação. Fique atento a:

  • Nome completo e CRM do médico de forma legível.
  • Carimbo legível com o nome do médico, CRM e endereço ou identificação da unidade de saúde.
  • Descrição clínica mínima (ainda que o diagnóstico precise manter sigilo, a indicação do tempo necessário de afastamento e se há relação com o trabalho, quando pertinente, devem estar claras).
  • Data e horário de emissão.

Suspeitas sobre a autenticidade de um atestado devem ser encaminhadas formalmente ao Conselho Regional de Medicina (CRM) para validação e apuração. Qualquer cidadão que tenha conhecimento da fraude pode, inclusive, formalizar uma denúncia ao CRM ou à Polícia Civil.

Sinais de Alerta

Alguns indícios podem levantar suspeitas sobre a falsidade de um atestado:

  • Carimbos borrados, tremidos ou que parecem ter sido copiados/clonados.
  • Número de registro do médico (CRM) ilegível ou que não consta nos registros oficiais.
  • Datas e horários de atendimento incompatíveis com o funcionamento da unidade de saúde (ex: atendimento noturno em uma UPA que comprovadamente não tem este tipo de escala). Casos já desbaratados mostraram fraudes com datas de emissão em feriados ou horários que não correspondiam à realidade da unidade de saúde – inconsistências que ajudaram a desmascarar os esquemas.
  • Assinaturas que não correspondem ao médico ou que parecem copiadas.
  • Rasuras ou alterações no documento.

Em tempos de tecnologia, é importante mencionar que o atestado digital emitido com assinatura eletrônica certificada (Padrão ICP-Brasil) é mais seguro, pois garante a autenticidade e a rastreabilidade do documento, dificultando a falsificação. O Atesta CFM, plataforma lançada pelo Conselho Federal de Medicina, busca justamente oferecer um meio seguro e rastreável para a emissão e validação de atestados, combatendo a fraude digital e em papel.

Consequências Legais e Éticas

As consequências da fraude em atestados são severas para todos os envolvidos:

Para Médicos

Envolver-se na emissão de atestados falsos configura uma dupla e grave violação:

  • Responsabilidade Penal: É crime de Falsidade Ideológica (Art. 299 do Código Penal), com pena de 1 a 5 anos de reclusão, e multa (se o documento for público). Se houver organização para a prática reiterada, pode configurar Associação Criminosa (Art. 288 do Código Penal), com pena de 1 a 3 anos de reclusão.
  • Responsabilidade Ética: É uma infração gravíssima ao Código de Ética Médica (Resolução CFM 2.217/2018) (ver, por exemplo, Art. 1º – Princípios Fundamentais – ao violar a verdade e a honestidade, e Art. 18 – Proibição de condutas antiéticas – ao expedir documentos falsos ou sem justificativa). As penalidades éticas podem ir desde uma advertência confidencial até a cassação do registro profissional (CRM), que impede o médico de exercer a medicina, conforme a gravidade e reincidência (Art. 22 da Lei nº 3.268/1957).

Para Pacientes e Empresas

  • Para o Paciente que Usa Atestado Falso: O uso de um atestado falso no trabalho pode levar à demissão por justa causa, conforme previsto no Art. 482, alínea “a”, da CLT (por ato de improbidade). Criminalmente, pode responder por Falsidade Ideológica (Art. 299 do Código Penal) ou Uso de Documento Falso (Art. 304 do Código Penal). Se o atestado for usado para obter benefícios (ex.: INSS), pode configurar Estelionato (Art. 171 do Código Penal).
  • Para a Empresa: Empresas que não verificam atestados e pagam por dias de absenteísmo indevido sofrem prejuízos financeiros diretos. O direito da empresa em contestar atestados médicos não está em um único artigo da CLT como o antigo Art. 75 (que trata de teletrabalho), nem se limita apenas a isso. Esse direito decorre do poder diretivo do empregador (Art. 2º da CLT) e é amparado por normas como a NR-07 (PCMSO). As empresas podem contestar atestados por meio de perícia médica própria ou de consultoria especializada em medicina do trabalho e perícia, e podem, inclusive, aplicar Justa Causa ao empregado por ato de improbidade (Art. 482, alínea “a”, da CLT), ou por desídia (falta de cumprimento das funções – Art. 482, alínea “e”, da CLT), ou insubordinação/indisciplina (Art. 482, alíneas “h”/”i”, da CLT), dependendo do caso e das políticas da empresa (Art. 483 da CLT trata da rescisão indireta pelo empregado, não se aplica aqui). Adotar políticas internas claras de validação documental, investir na capacitação de seus RHs para identificar sinais de alerta, e utilizar tecnologia de verificação (como assinatura digital, ou sistemas unificados, quando disponíveis), são medidas essenciais de prevenção.

Conclusão: Ética e Tecnologia Como Pilares da Confiança Médica

A venda e o uso de atestados médicos falsos não são “crimes menores” ou “sem vítimas”. É uma prática ilegal e antiética que corrói a confiança na classe médica, sobrecarrega o sistema público de saúde e prejudica empresas e a sociedade que arcam com custos injustos.

Combater essa prática exige ação coordenada:

  • Profissionais comprometidos inabalavelmente com a ética e a verdade documental.
  • Tecnologia que ofereça segurança e auditabilidade, como atestados digitais certificados (como o Atesta CFM).
  • Empresas que invistam em mecanismos de validação e perícia qualificada para proteger seus recursos.
  • Pacientes e cidadãos em geral que entendam que um atestado é um documento sério, um atestado de responsabilidade clínica, não de conveniência pessoal.

Para nós, médicos, está em jogo algo fundamental: a confiança na nossa palavra, que deve ser tão firme e inquestionável quanto um diagnóstico bem dado.


Caroline Daitx e Equipe Médica, Especialista em Medicina Legal e Perícia Médica | RQE 94.143 | CRM/SP 194.404


[Leia também: Prontuário Médico: Seu Escudo Legal e a Chave Para um Atendimento de Excelência  https://carolinedaitx.com.br/prontuario-medico-seu-escudo-legal-e-a-chave-para-um-atendimento-de-excelencia-guia-completo/

[Leia também: Evento Adverso e a Cultura da Culpa: Por Que Afastamento de Médico Sem Investigação Destrói Carreiras (e a Segurança do Paciente)  https://carolinedaitx.com.br/evento-adverso-cultura-culpa-medico-investigacao/

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