Médico vítima da cultura da culpa? Diante de um evento adverso, o afastamento sem investigação destrói carreiras e compromete a segurança. Dra. Caroline Daitx reflete sobre a “segunda vítima” e a cultura de segurança necessária na medicina.
A medicina é uma profissão de risco inerente. Lidamos diariamente com a complexidade do corpo humano, a imprevisibilidade das doenças e as limitações dos recursos. Por mais bem preparados e diligentes que sejamos, eventos adversos podem ocorrer no processo de cuidado.
Diante de um desfecho indesejado, a primeira reação – seja da instituição, da mídia ou da própria sociedade – muitas vezes não é a busca serena pela verdade técnica, mas sim a identificação rápida de um culpado. E, frequentemente, esse “culpado” é o profissional na linha de frente.
Um caso recente que ganhou destaque, como o que acompanhamos com as notícias sobre a morte de um bebê durante o parto em Balneário Camboriú e o subsequente afastamento de um médico, traz à tona uma discussão urgente e dolorosa: a forma como os eventos adversos são tratados em nossa cultura e o profundo impacto nos profissionais envolvidos.
A Dolorosa Realidade da “Segunda Vítima”: Falta de Apoio e Isolamento
É claro que sobre o caso de Balneário Camboriú apenas sei o que saiu na mídia (Manchetes como essas que estão na foto ao lado). Estou usando este exemplo apenas para que façamos a reflexão sobre algo que tenho visto constantemente. Quando um evento adverso ocorre, o foco primário e mais importante deve ser, sem dúvida, o paciente e sua família. No entanto, há outro lado dessa tragédia, muitas vezes silenciado e negligenciado: o do profissional de saúde envolvido.
Em muitos casos, esse profissional não recebe nenhum acolhimento institucional. Essa ausência de apoio transforma o profissional na chamada “segunda vítima”. O sofrimento emocional pelo desfecho adverso se soma à perda de confiança, ao isolamento e, muitas vezes, à destruição de uma carreira, antes mesmo que a verdade sobre o que aconteceu seja esclarecida.
Eu sei muito bem disso, porque recebo diariamente médicos que estão nessa situação, buscando orientação e amparo em meio ao caos emocional e profissional. É uma dor silenciosa, mas que assola a classe médica.
A Falha da Gestão Hospitalar: Afastar Profissionais Sem a Devida Investigação
É aqui que a gente precisa refletir: O que seria uma postura mais adequada por parte da gestão hospitalar?
A resposta natural de qualquer instituição que se importa genuinamente com a segurança do paciente e com a saúde física e mental de quem trabalha na linha de frente deveria ser transparente e de suporte. Seria muito mais responsável dizer: “Contratamos uma auditoria externa que vai iniciar imediatamente os trabalhos junto com a equipe hospitalar. Estamos dando todo o suporte para a família e para os profissionais envolvidos”.
No entanto, a prática comum, muitas vezes impulsionada pela pressão externa, é outra. Afastar sem investigar é mais fácil. Mas é também muito mais injusto. É uma prática que alimenta a cultura da culpa, inibe a notificação transparente de erros ou eventos adversos (por medo das consequências) e, com isso, compromete toda a evolução dos sistemas de saúde.
Construindo a Verdadeira Segurança do Paciente: Responsabilidade Compartilhada e Análise Profunda
A verdadeira segurança do paciente não nasce da punição individual e imediata. Ela nasce da responsabilidade compartilhada, da análise profunda das falhas (que na maioria das vezes são sistêmicas), da educação contínua e, fundamentalmente, do acolhimento.
Cada evento adverso deve ser visto como uma oportunidade de crescimento e aprendizado para todo o sistema, e não como uma sentença de destruição de carreiras e de vidas. A busca pela verdade técnica, imparcial e aprofundada – muitas vezes através de auditorias e perícias bem conduzidas – é o que realmente permite identificar as causas raiz do problema e implementar medidas eficazes para evitar que se repita.
Cuidar de Quem Cuida: O Primeiro Passo Para uma Medicina Justa e Humana
Se você acredita em uma medicina mais humana, ética e justa, compartilha essa mensagem.
Apoiar o profissional de saúde diante de um evento adverso não é passar a mão na cabeça de quem errou (se houver erro, a análise técnica o apontará). É garantir um processo justo, baseado em fatos e em análise técnica, e oferecer o suporte humano necessário para que esse profissional possa processar o evento e continuar exercendo a medicina com competência e segurança.
Cuidar de quem cuida é o primeiro passo para cuidar melhor de todos e construirmos um sistema de saúde mais seguro, justo e humano.
Caroline Daitx e Equipe Médica, Especialista em Medicina Legal e Perícia Médica | RQE 94.143 | CRM/SP 194.404
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
[Leia também: Prontuário Médico: Seu Escudo Legal e a Chave Para um Atendimento de Excelência
Se quiser ver o vídeo que fiz sobre este tema no Instagram e deixar sua opinião, clique aqui!