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Quais os limites para condutas externas, como uma intimação judicial, quando o paciente está internado em Unidade de Terapia Intensiva (UTI)?

Pacientes em Estado Grave Podem Ser Intimados Judicialmente? Reflexões Éticas, Legais e Médicas a Partir do Caso Bolsonaro

26/04/2025

Recentemente, um evento envolvendo a internação e suposta intimação judicial do ex-presidente Jair Bolsonaro reacendeu uma pergunta fundamental que

transcende ideologias e nos convida a refletir profundamente sobre a dignidade humana e os limites do sistema jurídico diante da fragilidade da vida: um paciente em estado grave, internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), pode, ou deve, ser submetido a um ato de cunho legal como uma intimação judicial? Enquanto médica-perita, sinto a necessidade de trazer a você, profissional de saúde ou estudante, uma análise que une o olhar rigoroso da medicina, da ética e do direito, para compreender essa delicada interseção entre a saúde, a vulnerabilidade do paciente e a atuação da Justiça.

A Vida Antes do Rito: Qual a Realidade de um Paciente em UTI?

A Unidade de Terapia Intensiva não é apenas um quarto de hospital com mais equipamentos. É o último bastião da vida diante do abismo, um ambiente de exceção onde o foco primordial e absoluto é o tratamento intensivo e a recuperação de pacientes em estado grave ou crítico. Ali, cada fio de soro, cada leitura de monitor, cada decisão médica carrega um peso imensurável. O objetivo principal não é burocrático, não é administrativo, e certamente não é jurídico: é salvar uma existência que se esvai ou está em alto risco. Submeter um paciente nesse contexto a qualquer interferência externa que não contribua diretamente para sua estabilização e recuperação exige a máxima cautela. A Resolução CFM nº 2.271/2020, a mais recente do Conselho Federal de Medicina sobre o funcionamento de UTIs, estabelece critérios rigorosos para o funcionamento dessas unidades, reforçando a complexidade e a necessidade de um ambiente totalmente voltado para o cuidado do paciente crítico.

Quais os limites para condutas externas, como uma intimação judicial, quando o paciente está internado em Unidade de Terapia Intensiva (UTI)?Intimar um Paciente Crítico: O Que Dizem a Ética Médica e a Bioética?

A conduta médica é norteada por princípios éticos sólidos. O Código de Ética Médica (CEM) é claro: o Artigo 22 exige o consentimento informado do paciente (ou seu representante legal) para qualquer procedimento. O Artigo 24 assegura o direito fundamental do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa e seu bem-estar.

Como podemos, sob a luz desses princípios, considerar ética a realização de um ato que pressupõe capacidade plena de compreensão e resposta em um paciente que, mesmo consciente, encontra-se em um estado de vulnerabilidade extrema na UTI, lutando pela vida, sob efeito de medicações, dor e estresse físico e emocional? Sua capacidade de discernimento e decisão pode estar gravemente comprometida.

Vai além do consentimento. O Princípio da Não Maleficência na bioética (“primum non nocere – primeiro, não causar dano”) nos ordena a evitar qualquer ação que possa agravar o sofrimento ou colocar em risco a recuperação do paciente. Intimar um paciente grave é, muitas vezes, transformar o leito de UTI – um santuário de cuidado – em palco de tensão e ansiedade, rompendo a delicada rede de estabilidade que sustenta sua esperança de recuperação.

A Proteção Legal: O Que Estabelece o Código de Processo Civil?

A proteção do paciente em estado grave não se limita à esfera ética ou bioética; ela é um mandamento legal expresso. O Código de Processo Civil (CPC), em seu Artigo 244, prevê expressamente que:

“Não se fará a citação, salvo para evitar o perecimento do direito, quando o citando estiver em qualquer repartição pública, ou particular, em cumprimento de serviço militar, em processo disciplinar perante órgão de classe ou em estado de grave enfermidade.” (Grifo nosso)

Este artigo estabelece uma salvaguarda clara: a citação (e, por extensão e bom senso jurídico, outros atos processuais que exijam interação e compreensão) não deve ser realizada quando o indivíduo está em estado de grave enfermidade. A condição de um paciente em UTI, mesmo que lúcido ou em aparente melhora, implica um estado de saúde que, para fins legais e éticos, deve ser considerada grave. A complexidade do quadro, a necessidade de cuidados intensivos e a vulnerabilidade inerente ao ambiente demandam sensibilidade por parte do sistema judicial e dos oficiais de justiça. O Parecer CFM nº 39/12 reforça que qualquer ato judicial que envolva o paciente em estado grave deve ser mediado pela avaliação médica, cabendo ao médico assistente atestar a impossibilidade da prática daquele ato naquele momento.

Neste contexto, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já reforçou em diversas decisões que a dignidade da pessoa humana (princípio fundamental da República, Art. 1º, III da Constituição Federal) deve guiar a interpretação e a aplicação dos ritos processuais. Portanto, a Justiça — soberana em seus princípios — não pode ser cega à condição concreta do ser humano que a ela se apresenta em seu momento de maior fragilidade.

O Caso Bolsonaro, a UTI e o Debate Público Necessário

No caso recente do ex-presidente Jair Bolsonaro, relatou-se que a intimação foi entregue enquanto ele ainda estava sob cuidados hospitalares. Independentemente das particularidades do caso ou das posições políticas, este evento específico serviu para jogar luz sobre a questão fundamental que analisamos: as condutas externas ao cuidado clínico em UTI e o respeito à vulnerabilidade do paciente.

Mesmo em casos onde o paciente esteja lúcido, é imprescindível que a equipe médica e o sistema judicial ponderem cuidadosamente:

  • Houve um parecer médico formal atestando a capacidade plena e inabalável do paciente para compreensão e resposta àquele ato específico, naquele momento e naquele ambiente?
  • A intimação ou ato judicial poderia ter sido adiado para um momento mais oportuno, fora do ambiente intensivo, sem prejuízo significativo para o processo judicial, de forma a não interferir na recuperação?
  • Foi considerada a possibilidade de citação ou comunicação por advogado constituído ou outro meio legal menos lesivo e invasivo à intimidade e tranquilidade do paciente e do ambiente de UTI?

A dúvida que pairou no ar e o debate gerado mostram o quanto nossa sociedade, incluindo o sistema de justiça, precisa amadurecer na relação entre os ritos processuais e a dignidade da vida humana em sua maior fragilidade. Não se trata de isentar quem deve ser responsabilizado perante a lei — mas de lembrar que o exercício da Justiça deve ser sempre compatível com o respeito primordial à vulnerabilidade humana.

Conclusão: Quando a Justiça Espera, a Dignidade Prevalece

A lei não é um fim em si mesma. Ela é instrumento de civilização, de organização social e de proteção aos direitos fundamentais. Por isso, é imperativo que a máquina jurídica, diante da fragilidade da vida e da complexidade de um ambiente como a UTI, saiba e possa esperar.

Cada paciente grave internado em UTI carrega em si não apenas um processo de saúde, mas uma história, um projeto de vida, uma família que o espera, e uma esperança de recuperação. Intimá-lo sem considerar sua real capacidade de compreender e responder plenamente, e sem a devida avaliação e mediação médica, é potencialmente violar algo mais profundo do que um direito processual: é violar a própria condição humana em seu momento de maior vulnerabilidade.

Na medicina pericial, e na atuação médica como um todo, temos a missão ética e legal de lembrar que a lei e os ritos processuais existem para servir à vida e à dignidade humana — e não o contrário. Proteger o paciente em UTI contra interferências indevidas é um dever profissional e um imperativo humanitário.

Se você é médico, advogado, gestor hospitalar, paciente ou apenas alguém que valoriza a vida humana em sua expressão mais frágil, convido você a refletir conosco: a Justiça que respeita a vida em seu estado mais vulnerável é a única verdadeiramente justa.

Texto: Caroline Daitx e Equipe

Caroline é Médica Especialista com Residência Médica em Medicina Legal e Perícia Médica | RQE 94.143 | CRM/SP 194.404
Referências

Resolução CFM nº 2.271/2020.  

Código de Ética Médica (CEM) 

Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).  

Parecer CFM nº 39/12. 

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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